As mil e uma faces de Cuba
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Texto por Juliane Westin
Faz mais de um ano que saí de Cuba e até hoje Cuba não saiu de mim.
“17 dias para um país relativamente pequeno, vai dar para conhecer bastante” – pensei. Ledo engano. Começando a ler o guia de viagem (imprescindível levá-lo, em se tratando de um local com difícil acesso à internet), descobri que existem muitas Cubas diferentes: a Cuba-balneário, dos resorts e espreguiçadeiras; a Cuba-Revolução, da História e dos personagens; a Cuba-música, da salsa e da rumba; a Cuba-rural, do tabaco e das cavernas pré-históricas; a Cuba-natureza, dos mergulhos e cachoeiras…
Conformada com a necessidade de escolher apenas um caminho para explorar e tentando balancear um pouquinho de cada mundo, chegamos – eu e duas amigas – à ilha num misto de curiosidade e euforia.
Vista da sacada da nossa casa na curiosa Rua da Amargura, Havana Velha. Foto: Juliane Westin
Primeiro lugar: Havana. Chegando lá, dos três bairros mais ocupados por turistas – Centro Habana, Vedado e Habana Vieja – optamos pelo último. Como sugere o nome, foi em Havana Velha que nos sentimos mais imersas na Cuba que pintávamos nos pensamentos: salvo raríssimas construções mais modernosas, o bairro é todo (nem sempre bem) preservado com fachadas antigas e ruas mais estreitas, acessadas mais facilmente pelos abundantes bicitaxis que por carros. É também onde se concentra a maior parte dos pontos turísticos e tudo se faz a pé.
Rua Teniente Rey vista da Plaza Vieja, Havana Velha. Ao fundo, o Capitólio, que já foi sede do governo pós-59 e cuja arquitetura foi inspirada no Capitólio dos EUA, em Washington. Foto: Juliane Westin
Hora do descanso. Foto: Camila Romana
Em Havana tivemos o primeiro contato com o modelo de hospedagem mais comumente praticado por lá: as chamadas casas particulares.
São famílias que disponibilizam um ou mais cômodos de suas casas para alojar turistas em troca de CUCs. Ao contrário do que pensamos, o esquema está longe de ser um abrigo improvisado: todas as casas onde ficamos eram super confortáveis e possuíam ar-condicionado e banheiro privativo com água quente. Os proprietários oferecem café da manhã (cerca de CUC$3,00 por pessoa) completo e delicioso e, exceto em Havana, há a opção de jantar (de CUC$8,00 a CUC$10,00) – uma ótima pedida, já que em cidades menores às vezes não é fácil encontrar boas alternativas de refeição. Uma coisa que aprendemos é: ô, povo pra cozinhar bem! Jantares deliciosos e preparados com carinho para arrematar o dia.
O esquema das casas particulares traz outra facilidade: não é necessário chegar a Cuba com roteiro fechado. Nós reservamos os três primeiros dias em Havana… E só. Ocorre que os donos das casas formam entre si uma grande rede de contatos vantajosa tanto pra eles (que são sempre indicados por amigos), quanto para os turistas, que dificilmente ficam desalojados. Se seu contato já está com a casa cheia, problema nenhum: eles sempre têm uma carta na manga. Se Drummond fosse a Cuba, diria que Carmen indicava Lila, que indicava Sae, que indicava Jorge, que indicava(…).
Recomendo demais essa opção que, além de ser bem mais barata que hotéis tradicionais, permite uma troca muito rica com os locais. Afinal, não há melhor forma de entender uma cultura que conhecer e ouvir aqueles que a fazem. Se você não é de papo, ótimo! Eles te dão total privacidade. Nós, curiosas que somos, adorávamos jogar conversa fora com a família anfitriã. Um dos assuntos preferidos deles quase sempre era a teledramaturgia brasileira – Avenida Brasil, do Tifón e da Doña Carmina, angariou muitos fãs por lá também. Sobre política, não adianta forçar: alguns não querem falar sobre e acabam saindo pela tangente.
Anfitriões e hóspedes: Carmen (a dona da casa), minhas amigas Camila e Caroline, Dona Ofelia, eu e Ariel. Havana.
Havana é um museu a céu aberto.
Esquina de casa. Foto: Camila Romana
A sensação de “não saber o que esperar” é permanente. Lembro que, no voo de ida, havia um passageiro com a bandeira dos Estados Unidos na camisa. “Que ofensa”, comentei com minhas amigas, “ir a Cuba vestido de entusiasta dos EUA”. Quebrei a cara no mesmo dia ao chegar a Havana e descobrir que a bandeira estadunidense estampa de calças legging a painéis de carro, que a música ianque é consumida e que, discordâncias políticas à parte (e elas, sim, são fortes), o cubano gosta e é curioso em relação à cultura dos Estados Unidos.
Não sabemos o que esperar porque realmente não temos acesso à realidade cubana que não seja através de informações intermediadas por diversos filtros, do livro de História aos meios de comunicação. Cuba flutua no nosso imaginário entre a bolha poética dos carros antigos e a revolução de Fidel. A verdade é que sabemos muito pouco ou quase nada do dia a dia da ilha, dos hábitos, gostos e interesses, das trivialidades do cubano atual – e não do guerrilheiro da Sierra Maestra. Descobrir um pouco de como a dona de casa, a garçonete, o taxista e o funcionário da lavanderia (que cursa Economia e escuta Céu e Criolo) pensam sobre a vida foi uma das maiores surpresas e delícias que vivenciamos em Cuba.
Cotidiano em Havana: rappers no Callejón de Hamel, beco famoso pela arte de rua e pelas rodas de rumba. / Dois amigos na Plaza Vieja. Fotos: Juliane Westin
Depois de visitar alguns museus, sendo o principal e mais famoso o Museu da Revolução – antigo palácio presidencial na era pré-59 -, concluímos, afinal, que a melhor e maior forma de se absorver a cultura e história cubanas é simplesmente o caminhar atento pela cidade. Cada fachada, cada carro, cada praça e rua, cada pessoa tem algo a ensinar sobre a Revolução ainda tão recente, latente, presente. É fácil encontrar quem tenha parentesco com guerrilheiros e todos parecem se orgulhar disso. Havana é, sim, um museu a céu aberto. Melhor: um museu vivo, orgânico, ruidoso e musical. Entre a salsa e a rumba, não existe noite sem música em Havana.
Viajamos a Cuba em pleno verão e, olha, não foi fácil. Aquele calor abafado, úmido, que quase se pode tocar. Éramos duas brasileiras e uma francesa e, se para as cariocas já foi pesado, para a francesa, então… Eis que, recém-chegadas à ilha, na primeira hora de caminhada nos deparamos com Ele: o redentor de todo o suor, o mago das angústias calorentas, o elixir da salvação veranil – o Mojito. Bebida típica de Cuba, o drink de rum, limão e hortelã é a melhor pedida nas tardes quentes. O melhor é que se pode encontrá-lo com muita facilidade por valores que variam entre CUC$1,50 e CUC$3,00. Vestindo a carapuça de turistas, fomos ao Museu do Rum, e esta é a receita disponibilizada pela Havana Club (e feita e aprovada por mim!):
Bar “El Dandy”, onde tomamos nosso primeiro mojito. Foto: Juliane Westin
– 50ml de rum
– Suco de meio limão
– 1 colher de sopa de açúcar
– Um punhado de hortelã
– Água com gásMacerar a hortelã com o açúcar e o suco de limão. Adicionar 50ml de rum e 2 ou 3 cubos de gelo. Completar o copo com água com gás.
Cilindro ansioso, Punta Perdiz. Foto: Juliane Westin
Depois de Havana, enfim o mar. Eis que chegamos à Playa Girón, cidadezinha minúscula que atingiu o ápice da sua importância histórica ao ser palco de um dos momentos cruciais da Guerra Fria: a invasão da Baía dos Porcos – para eles, La Batalla de Girón. Hoje em dia, a cidade é famosa por atrair turistas em busca de um mergulho ao mesmo tempo lindo e ace$$ível. Nosso caso. O que pensamos que seria apenas uma parada interessante no caminho entre Havana e Trinidad acabou se revelando uma das melhores surpresas da viagem.
O mergulho realmente é imperdível. Eu nunca havia visto águas tão cristalinas. 40 metros de visibilidade, corais coloridos que, sinceramente, achei que só existissem em animações da Pixar… Acabamos ficando um dia a mais na cidade só para repetir a dose – e aproveitamos pra comer mais uma vez a comida da Lila, proprietária superquerida da casa particular onde ficamos.
Mar de Girón. Foto: Juliane Westin
Ainda em Girón, sentindo o clima amigável e receptivo típico das cidades pequenas, resolvemos fazer algo que não estava no roteiro: visitamos uma escola fundamental. A diretora Hidolídea nos levou de sala em sala e dizia com orgulho para os cubaninhos, entre elogios e pedidos de atenção: “Essas são as turistas!”. Eles respondiam, em uníssono decorado, mecânico mas envaidecido, uma das frases célebres do mártir da independência de Cuba e ídolo-mor do país: “Los niños son la esperanza del mundo, José Martí”.
Conhecemos as instalações da escola – simples, mas completas -, vimos crianças enfileiradas cantando o hino, presenciamos a bronca que levou o menino que fazia bagunça durante a solenidade e saímos dali com a impressão de que Cuba talvez não seja assim tão diferente do resto do mundo.
Cubanitos en clase. Foto: Camila Romana
Los niños son la esperanza del mundo.
Na escola cubana, os mais novos usam lencinho azul e os mais velhos, vermelho. Foto: Camila Romana
Passado o marasmo praiano de Girón, partimos pra uma das cidades mais conhecidas de Cuba: Trinidad. O centro histórico é uma espécie de Paraty/Tiradentes caribenha, com calçamento de pedras e casarões coloridos. É uma cidade pequena, mas cheia de atrações turísticas, e se destaca por ser repleta de bares e casas de salsa.
Seguindo a cartilha cubana, andar pelas ruas é seguro e tranquilíssimo a qualquer hora do dia. Porém, ao contrário dos outros locais onde fomos, Trinidad é absurdamente (e até assustadoramente) conservada. Paredes com pintura impecável, iluminação urbana perfeita, jardins bem cuidados… Apesar da impressão positiva de cuidado e esmero, o contraste com o resto do país (e até com as zonas menos centrais da cidade) é notado com certo estranhamento pelos turistas mais atentos. Ao caminhar por Trinidad, a sensação de estar andando em uma cidade cenográfica volta e meia nos atingia – e não só em relação à aparência perfeita das ruas e fachadas. O tratamento diferenciado dado ao turista, sempre mais cliente que pessoa, o excesso de gentilezas (e de feirinhas de souvenir), os restaurantes mais caros e os bares de salsa onde os cidadãos (salseros de raiz) não eram muito bem-vindos frustraram um pouco nossa visita – logo Trinidad, tão linda nas fotos e tão indicada!
Plaza Mayor de Trinidad. Foto: Juliane Westin
Trinidad e suas ruas fotogênicas. Foto: Juliane Westin
A muitas vezes incômoda sensação de que os trabalhadores ligados ao turismo colocam o estrangeiro em uma posição de honra – lugar do qual sempre tentávamos fugir, muitas vezes em vão – de certa forma ajuda o turista a colocar-se em seu lugar: talvez mais do que qualquer outro lugar aonde fui, Trinidad me fez aceitar a condição de que eu era um elemento externo. Aos poucos fomos descobrindo que por lá é bem difícil bolar um roteiro alternativo, ir à caça do imprevisível, ter aquela experiência de mochileiro sem rumo. Entender a situação econômica do país ajuda a explicar esse contexto.
Cuba possui duas moedas oficiais: o Peso Cubano (CUP, chamado por lá de moneda nacional) e o Peso Conversível Cubano (o chamado CUC). O primeiro é usado apenas pelos locais e é como eles recebem seus salários e fazem suas compras. Já o CUC tem a cotação equivalente ao dólar americano – cerca de 25 vezes o valor da nacional – e é a moeda utilizada, por exemplo, em transações turísticas. De corridas de táxi a alimentação, praticamente só lidamos com ela. Para contornar a crise econômica, crescente desde o fim da União Soviética, o turismo foi e é largamente incentivado em Cuba, e hoje é uma das principais fontes de renda do país. Como explicaram Sae e Guille, nossos anfitriões em Trinidad, o centro histórico da cidade foi todo planejado para ser e praticar o modelo ideal de recepção ao estrangeiro. Daí a perda inevitável dos traços mais orgânicos e espontâneos – tanto de sua aparência quanto de seu povo.
Sabendo disso, nos coube relaxar e aproveitar da forma que nos parecesse mais vantajosa – claro, sempre que possível aproveitando as frestas além-Lonely Planet: tratamos de caçar um parque de cachoeiras onde passar o dia, dedicamos as andanças pela cidade a entrar em galerias de arte – lindas e abundantes -, encontramos uma lanchonete de comidas rápidas para fugir dos restaurantes tradicionais (coisa rara em Cuba) e passamos uma das noites na festinha de aniversário do Guille, conversando sobre nossas impressões ao mesmo tempo encantadoras e esquisitas da cidade. O saldo, no fim das contas, foi superpositivo.
A linda Galeria de Arte Universal Benito Ortiz, Trinidad. Foto: Juliane Westin
Las turistas.
Nas beiradas da cidade, morador lê sobre as eleições presidenciais dos EUA no jornal cubano Granma. Foto: Camila Romana.
Quando a viagem chega ao terço final, acontece o seguinte: você já fez o reconhecimento do terreno, já se situou, já se acostumou com o idioma e os signos de comunicação dos locais, já adaptou os olhos à paleta de cores do ambiente. E a partir daí parece que os dias voam.
Depois de muita salsa, “Hola, ¿qué tal?“, dias quentes e lindos, falatório, mar do Caribe, Revolución e Latinoamérica, eis que voltamos a Havana para aproveitar os últimos dias. E chegamos quase como nativas, já com o restaurante preferido, a mesma casa particular de portas abertas, as melhores ruas, caminhos na ponta da língua… Resolvemos arrematar a viagem revisitando dois locais memoráveis.
Na penúltima noite, voltamos à Fábrica de Arte Cubano – ruínas de uma construção onde hoje funciona um misto de galeria de arte, apresentações de música, bar/boate e cinema a céu aberto. É uma experiência doida, imperdível e totalmente inesperada que não poderia estar em melhor contexto. Assim como os concertos da FAC, a impressão é que Cuba se encontra hoje nesse lugar de trânsito entre o clássico e o experimental, tradição e descoberta.
Por fim, escolhemos o Malecón para passar o último pôr do sol. A famosa orla da cidade transcende o conceito de cartão postal puramente contemplativo e segue efervescente de gente, de música, de ondas que batem forte contra o muro, de vida. É do céu rosado de lá a imagem que primeiro me vem à cabeça quando me lembro dessas férias.
O crepúsculo no Malecón a partir de um cocotaxi. Foto: Juliane Westin
E num espasmo corre-arruma-mochila-hasta-luego-último mojito!-taxi-voo, a viagem acabou.
Me despedi da ilha com três pensamentos: a alegria de ter tido a oportunidade de me encantar com tantos e distintos locais e pessoas; a nostálgica sensação de que o prazo de validade da Cuba que conheci talvez esteja expirando; e a convicção de que a viagem certamente ajudou a relativizar o pragmatismo com o qual eu encarava o mundo ao redor. Sim, contradições existem e são inerentes às sociedades humanas.
As conclusões a que cheguei? Difícil dizer, de certo modo até voltei mais confusa. A diferença é que voltei achando ótimo isso de não ter opiniões fechadas. De certeza, ficam a saudade, os mojitos que aprendi a fazer e a vontade de voltar o mais breve possível.
¡Viva Cuba!
Sol e água fresca na Playa Las Gaviotas, Cayo de Santa Maria. Foto: Juliane Westin
Seu Rafael é fruteiro e todo dia desce das montanhas para vender seus produtos em Trinidad. Nesse dia, o sapato furou e ele nos pediu um analgésico. Foto: Camila Romana
Meninos jogam futebol na praça. Na bola, a América Latina. Remedios, Cuba. Foto: Juliane Westin
Tags: Fotografia, Viagem
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