A onda mais perigosa do Brasil

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Daniel Rangel é o codinome do ‘Cabeça’, um surfista carioca que não tem medo de mar, nem de pedra. Aos 32 anos, ele é um dos poucos atirados que encaram a Laje do Gardenal, localizada a 2 km da praia da Barra da Tijuca e com nome de remédio tarja-preta – onda considerada por ele e outros feras a mais perigosa do Brasil. Batemos um papo sobre os riscos e as recompensas do surfe em slabs, uma modalidade que cresce a cada dia.

‘Cabeça’ encarando a Laje do Gardenal. Imagem: Ready 2 Fly

– Como a sua história com o surfe começou?

Surfo desde que nasci. Comecei a competir aos 9 anos de idade, tive uma carreira de amador e venho vivendo o surfe desde então. Aos 18 anos, fui morar no Havaí, numa ilha ao norte de Oahu, com pouco crowd e ondas bem desafiadoras. Assim como Pipe e Backdoor, lá tem outros lugares afastados e inóspitos, onde você aprende a perder o medo. Fiquei quase 10 anos sem voltar, virei meio que matuto de lá, mas hoje eu fico mais por aqui. No verão, eu costumava ir para o Taiti, porque sempre gostei de surfar ondas power, como Teahupoo.

– O que são os slabs e como você se interessou por eles?

Os slabs são ondas diferentes, que quebram em bancadas bem rasas. Quando eu voltei pro Brasil, fiz amizade com uma galera que estava desbravando as lajes do Rio, como o Paulo Curi, o Felipe Munga e o Felipe Cesarano, que foram uns dos primeiros a desbravar a onda do Gardenal. É sempre uma expectativa muito grande antes do swell, porque todo mundo quer ir e não costumamos ter ondas assim no Brasil. Tem que ser uma ressaca bem forte. Assim, a gente foi se unindo como um grupo e passamos a pegar várias lajes pelo Rio. O negócio ganhou força. A galera daqui está elevando isso para um outro nível, ralando, se machucando e botando a cara.

Gardenal mostrando seus dentes. Foto: Igor Hossmann

– Tem alguma preparação especial pra surfar uma onda dessas?

Eu não sou o cara mais atleta do mundo, mas sempre consegui fazer as coisas que eu quis, sem me lesionar. Também nunca tive problema para ficar em forma. Com certeza, na semana que vai rolar o slab, você não sai pra tomar aquela cerveja, precisa se resguardar, pra ter certeza que o corpo vai estar pronto. Já sabe que vai tomar bastante porrada.

– E como se chega na Laje do Gardenal?

A laje fica ao lado das Ilhas Tijuca, a uns 2 km da praia da Barra. A gente sempre vai de jet ski, porque, se alguém se machucar, precisa dele pra voltar. Saímos do canal de Marapendi por um percurso bem legal e com uma interação muito forte com a natureza. Você vê as condições do canal, se tá muito sujo, vê o esgoto saindo dos prédios… Isso acaba criando uma relação muito empática com a natureza. Porque, no fundo, você está nas mãos dela.

Paulo Curi, um dos mais experientes, no olho do furacão. Imagem: Igor Hossmann

Eu posso dizer que o Gardenal é, sem dúvida, a onda mais perigosa do Brasil, e uma das mais perigosas do mundo. Quem conhece o lugar sabe disso.

Daniel Rangel

Onde a beleza e a força da natureza se encontram. Imagem: Pedro Fortes

– O que faz do Gardenal uma onda tão perigosa?

A profundidade, o fato de a onda quebrar na ponta de uma pedra tão rasa, que tem uma parte que nem tem água. Se você ficar na parte da onda pra pegar o tubo (que é o que todo mundo quer) e cair, você vai bater na pedra, isso é certo. A pergunta é como você vai bater – forte ou fraco, de cabeça ou de costas. Eu bati de bunda uma vez e fiquei uma semana mancando. O Pedro Calado, big rider renomado, no último swell saiu todo lanhado e tomou um monte de ponto. O Munga também meteu as costas lá. Todo mundo que tentou pegar o tubo se machucou. Por enquanto, a laje tá ganhando de 3 x 0.

– E dá pra pegar na remada?

Não, só com o jet, o Gardenal é impossível de pegar na remada. No rabo da onda, até dá… Mas pra pegar o tubo e a onda inteira, é impossível. Ela vem com tanta água que você precisa da ajuda da máquina. A maioria dos slabs chegam de um tamanho tal que você precisa de um jet ski. É um deslocamento de água muito grande, o que torna isso humanamente impossível. É tipo Teahupoo, quando fica gigante.

– Qual a diferença entre a onda do Gardenal e a de Teahupoo?

Vou te falar que no Gardenal a laje é mais rasa e a onda é menos perfeita. Teahupoo é mais perfeita. Mas o jeito que a onda vem é muito parecido e, por coincidência, a direção boa do swell também. Quando ele vem de um certo ângulo, faz um bowl, que é onde forma o tubo. É muito delicada ali a direção da ondulação e do vento. Óbvio que Teahupoo recebe swells muito maiores, chega a 25, 30 pés, mas vou te falar que aqui com 10 pés de onda, a força é igual e até mais perigoso. Até quem tem muita experiência lá, e já foi ao Gardenal, fala isso. Teahupoo é uma onda de verdade, tem mais água embaixo e uma bancada mais definida. Aqui, é uma ponta de pedra que, por acaso, dá um momento. É bem esquisito.

– Quais outras lajes vocês costumam pegar?

Tem várias outras, como o Shore de Copacabana, o Shock lá de Itacoatiara, com o Bruninho Santos, a Laje de Ipanema, as de Angra. Agora a galera tá indo, descobrindo. Quando eles veem que vai ter swell, vão pra ponta da Ilha. Esse movimento, que é relativamente novo no mundo, está crescendo por aqui também. De uns 8 anos pra cá, os australianos, que são os pioneiros, começaram a bombar e a explorar mais o surfe em slabs.

Em Angra, Cabeça deep no tubo e Caio Vaz no camarote. Foto: Igor Hossmann

A Laje do Shock com o motor ligado, em Itacoatiara. Foto: Túlio Henrique

– Quantas vezes por ano essas ondas quebram?

O negócio é que as oportunidades são poucas. Se aquilo ali rolasse toda semana, já estaríamos em outro nível. Mas como são 5, 6 vezes ao ano, o processo de decifrar a onda é mais lento. Mas quando tem, a gente tá sempre lá.

– E os equipamentos?

Essa é a parte mais difícil nessa modalidade. O custo é altíssimo, tanto com os riscos para a saúde, como também o custo de abastecer o jet, comprar os coletes e os sleds, é um esporte bem caro e o equipamento é fundamental. A gente sempre se ajuda, faz uma vaquinha, pega emprestado dos amigos, cada um dá um jeito e um ajuda ao outro sempre. É um esporte de equipe, a galera acaba virando família mesmo. A gente põe a nossa vida em risco pelo próximo também, se der alguma merda, alguém bater, você vai pular, vai tentar salvar, é uma mini família mesmo. É bem legal.

– O que passa na cabeça lá no outside?

Normalmente, temos 2 jets puxando e nós somos uns 6 surfando. A gente fica no canal esperando e, quando entra a série, você não sabe como a onda vai ser. O cara pode te botar na melhor onda da sua vida, ou na pior. O Paulo Curi é o piloto mais experiente, foi ele quem me botou nas minhas melhores ondas, é um dos que mais conhece o lugar e já pegou algumas das melhores ondas já surfadas lá. Eu confio muito nele. Uma vez ele me puxou e no último segundo virou pra trás e gritou “não!”, eu segurei firme na corda e ele me tirou. Você vai aprendendo aos poucos a angulação, se vai ser boa ou ruim. Tem como medir até certo ponto, mas é uma incógnita.

Acima: ‘Cabeça’ tentando fugir das pedras no Shock. Abaixo: ‘Cabeça’ botando pra dentro numa fechadeira perfeita. Imagens: Ready 2 Fly

– E depois que pega a onda?

Essa é a brincadeira. No fim do dia, todo mundo volta lanhado e feliz. É isso que te faz voltar, essa sensação de estar no meio de um turbilhão, igual àqueles caçadores de tornado que querem chegar o mais perto possível. O surfista de ondas grandes também tem essa sensação. O equipamento e as técnicas de salvamento fazem uma diferença gigante. É uma linha bem tênue entre o risco e essa sensação. Na noite anterior, você pensa nisso, você imagina os cenários. Numa dessas, eu posso sair de lá carregado numa maca direto pro hospital.

– Como você avalia os riscos?

O cara que pula de basejump deve entender mais ou menos essa sensação de estar em risco. Tem gente que surfa ondas gigantes, chega lá e não quer se arriscar, e é normal. Porque o negócio é muito perto de não ser uma onda. O cara que tem acesso a ondas boas não vai querer se arriscar ali. Mas quem não tem cão caça com gato. É óbvio que eu queria estar surfando Teahupoo o tempo todo, mas tô numa fase da carreira que não dá pra ficar indo direto. E esse lance do risco também dá um up na parada. Esse lance de ninguém ter saído de um tubão lá – a galera já ficou na boca, bem perto, mas ainda não saiu. Tem que ser uma combinação perfeita pra ser a onda da vida: momento certo, onda certa, equipamento certo.

No dia que alguém pegar o tubão no Gardenal, ficar fundo e sair, vai ser o primeiro. Vai ficar comprovado que o ser humano consegue… Porque, até agora, só deu pra entrar.

Daniel Rangel

Quem vai ser o primeiro a sair dali? Foto: Igor Hossmann

– E quem você acha que pode ser o primeiro?

Tem um pessoal muito talentoso aí. O Felipe Cesarano, o Scooby, o Pedro Calado, o Bruninho, o Trekinho, o Caio Vaz, o Paulo Curi, o Felipe Munga, um grupo expressivo de tube riders e surfistas de ondas grandes brasileiros. Se tem alguém que vai conseguir fazer esse feito, está nesse grupo. Vamos ver quem vai tirar a sorte grande.

– E para fotografar lá?

Os fotógrafos que sempre vão com a gente são o Igor Hossmann e o Pedro Fortes. Com o tempo, a gente aprendeu que, se eles ficarem dentro d’água, eles perdem os momentos, porque a onda seca tanto que fica abaixo do nível do mar. Agora, a gente leva um jet só para os fotógrafos conseguirem tirar fotos de um nível acima.

A imagem que foi parar no Instagram @NikeRio. Foto: Igor Hossmann

– E como foi a onda dessa foto que saiu no Nike Rio?

Essa foto foi no primeiro swell desse ano que eu peguei lá, na semana da WSL aqui no Rio. Naquela onda, eu estava mais pra frente e botei pro rabo dela. Olhando a foto agora, eu falo: “Devia ter posto reto, pra depois virar.” Só que é mais fácil falar do que fazer, né? (Risos.) Eu fui e botei no corte, fiquei na boca do tubo. A foto fica linda, a onda em si já é linda. Na onda seguinte, eu fiz o que não fiz na primeira, e acabei em cima da pedra. Mas foi a melhor sensação no surfe que eu já senti no Brasil. A única vez que eu senti algo igual foi a visão de backside de um tubo em Teahupoo. Aqui, você vê os prédios da Barra, porque a onda entorta e você fica de cara pra praia. A última coisa que eu vi antes de cair foi o Barramares.

– Pra fechar o papo, qual onda você sonha em surfar nos próximos anos?

Cara, meu maior objetivo na vida é surfar The Right, em West Oz, e participar do campeonato Red Bull Cape Fear, no Cape Solander, em Ours. Espero ter uma chance!

Quem quiser conhecer mais e acompanhar de perto as aventuras do Daniel, é só entrar no Instagram dele.

*Todas as imagens do post foram cedidas pelos amigos Pedro Fortes, Igor Hossmann, Túlio Henrique e Ready2Fly Imagens Aéreas.

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